Jaime António
O Resto e o Gesto: Desenhos para o século XXI é um projecto de criação artística contemporânea, que procura reforçar o entrosamento da Arte Rupestre do Côa, classificada como Património Mundial da Humanidade, através de três abordagens plásticas. Alexandre Farto, Catarina Patrício e Paulo Lisboa, propõem-se re-figurar esta arte única do Paleolítico superior (c. 25 000 – 10 000 antes do Presente) e sua paisagem por meio de outros riscadores e superfície de inscrição, mas sempre inscrevendo, desenhando e designando.
A técnica é a primeira etapa onde começa o humano. Em certos momentos, técnica e natureza cruzam-se – e as zonas de fronteira são sempre faixas de miscigenação, e não de oposição – tal como em outros tantos momentos, a ideia de técnica entrecruzar-se-á com a noção de humano. Essa zona indefinida é o território da arte.
As primeiras pedras talhadas, os primeiros utensílios produzidos, as primeiras paredes gravadas, poderão não ser absolutamente inteligíveis, mas logram ser lidos na sua tecnicidade e imensa plasticidade originária. São testemunhos pétreos que cristalizaram para a eternidade narrativas, movimentos, anatomias.
Nem puramente instrumental, nem absolutamente subjectiva, a criação artística resulta da acção de um corpo sobre uma superfície de inscrição – de um corpo que aprendeu a ver para poder inscrever. As Artes-Plásticas revelam-se assim na dupla mediação de ser ainda técnica e já discurso. É essa a lição ancestral gravada nas paredes do Vale do Côa.
Mas porque o retorno do arcaico é inseparável do processo em aberto que a Modernidade ainda é, apesar de algumas tentativas pós-modernas no seu fechamento, a concretização da exposição ficaria incompleta sem que se lhe criasse uma estrutura de pensamento. Assim sendo, aquando da inauguração da exposição pública dos trabalhos de Farto, Lisboa e Patrício, será igualmente apresentada uma conferência com Bragança de Miranda, Maria Augusta Babo e Maria Teresa Cruz, investigadores do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens. Tratar-se-á de um entrecruzamento de saberes, uma discussão aberta entre a prática artística e a produção científica.
Notas sobre os artistas:
Alexandre Farto tem vindo a desenvolver um caminho ímpar na arte urbana internacional. Num primeiro momento através da prática do graffiti sob o nome de VHILS, Alexandre Farto desenvolve a sua estética do vandalismo numa multiplicidade de suportes – da pintura stencil à escavação de paredes, de explosões pirotécnicas à modelação 3D – expandindo os limites da expressão visual. Alexandre Farto formou-se na University of the Arts – Central St Martins College of Art and Design (2008). (http://www.alexandrefarto.com)
Catarina Patrício, nos seus desenhos de grande formato a grafite sobre papel, trata o neorealismo como pulsão para a inscrição arcaica da linha, numa tomada da forma legível pela apropriação da memória imagética colectiva proveniente do cinema, reterritorializando-o. Catarina Patrício é licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (2003), mestre em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (2008) e doutorada em Ciências da Comunicação pela mesma Faculdade (2014). (http://vimeo.com/48751435)
Paulo Lisboa, pela estética formalista, explora ao máximo as especificidades plásticas da grafite, saturando de tal forma o papel até ao ponto em que o papel deixa de ser superfície de inscrição e é já pura matéria. O brilho e as camadas da grafite induzem no espectador a sensação de se estar em diante de fotografias de luz e sombra, porém é desenho. Paulo Lisboa licenciou-se em Pintura no Instituto Politécnico de Tomar (2008) e frequenta o Mestrado de Desenho da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. (http://cargocollective.com/paulolisboa)
As três distintas abordagens plásticas unem-se no parietal e lítico, alcançando assim, à distância, a potência das inscrições primordiais da arte paleolítica. Assumidamente, Farto, Patrício e Lisboa são artistas neo-líticos.